Por Gustavo Krause A prática democrática no Brasil dos últimos vinte anos teve, pelo menos, três utilidades: promover a alternância do poder, confirmando, a um só tempo a nobre função da democracia e a sabedoria popular segundo a qual "não há mal que sempre dure…"; demonstrar que no exercício da atividade políticas, especialmente, quando as pessoas são tocadas pelos encantos do poder, não há monopólio das virtudes e dos vícios; revelar a fragilidade das convicções ideológicas e a tibieza da lealdade partidária cujos donos não resistem a um leve fungado no cangote pelos detentores do poder.
Bem que a nossa democracia poderia ir mais adiante, realizando, na expressão de Bobbio, "promessas não-cumpridas" como a maior transparência, controle social e menor nível de corrupção; maior taxa de renovação das elites e menor influência das oligarquias; maior democratização do acesso ao poder e às oportunidades e menor desigualdade na repartição do benefícios do congresso.
Mas não tem sido assim.
Faltam aperfeiçoamentos aos mecanismos da democracia representativa capazes de conferir maior eficácia ao sistema político.
Em outras palavras, falta fazer a reforma política, um compromisso retórico tão recorrente quanto descumprido.
Felizmente na última quarta-feira (28/03/07), o Tribunal Superior Eleitoral deu uma contribuição de grande alcance para consolidação da nossa democracia na decisão proferida em razão de consulta formulada pelo, então, PFL.
O teor da consulta é o seguinte: "Os partidos e coligações têm o direito de preservar a vaga obtida pelo sistema eleitoral proporcional quando houver pedido de cancelamento de filiação ou de transferência do candidato eleito por um partido para outra legenda?".
Por seis votos a um, aquela Corte reconheceu que os mandatos obtidos nas eleições, pelo sistema proporcional (deputados estaduais, federais e vereadores), pertencem aos partidos políticos ou às coligações e não aos candidatos.
Pela argumentação sólida seja no plano doutrinário, seja no plano jurídico-legal, vale a pena transcrever trechos do voto do Ministro-Relator, César Rocha que foi seguido e enriquecido por cinco dos seus pares.
O eminente Julgador vai buscar na obra clássica de Maurice Duverger a essencialidade dos partidos políticos para o funcionamento da democracia representativa, essencialidade tal que, na ótica do pensador francês, gera o que ele chama de "partidocracia" e na compreensão de César Rocha não se encontra, "no mundo ocidental, nenhum sistema político que prescinda da sua intermediação, sendo excepcional e mesmo até exótica a candidatura individual a cargo eletivo fora do abrigo de um Partido Político".
Mais adiante, arrimado na melhor doutrina nacional, encontra apoio para utilizar e aplicar os princípios e normas constitucionais na interpretação ao caso concreto da consulta.
Em seguida, é incisivo ao afirmar: "não há dúvida nenhuma, quer no plano jurídico, quer no plano prático, que o vínculo de um candidato ao Partido pelo qual se registra e disputa uma eleição é o mais forte, se não o único, elemento de sua identidade política, podendo ser afirmado que o candidato não existe fora do Partido Político e nenhuma candidatura é possível fora de uma bandeira partidária".
Na seqüência de seu claro raciocínio, o Julgador é contundente ao ressaltar que "parece-me equivocada e mesmo injurídica a suposição de que o mandato político eletivo pertence ao indivíduo eleito, pois isso equivaleria a dizer que ele, o candidato eleito, se teria tornado senhor e possuidor de uma parcela da soberania popular, não apenas transformando-a em propriedade sua, porém mesmo sobre ela podendo exercer, à moda do exercício de uma prerrogativa privatística, todos os poderes inerentes ao seu domínio, inclusive o de dele dispor".
Não hesita em invocar o princípio constitucional da moralidade pública inserido no artigo 37 da CF em abono de sua tese alegando que "o princípio da moralidade repudia de forma veemente o uso de qualquer prerrogativa pública, no interesse particular ou privado".
E depois de registrar a mudança de partido de 36 parlamentares eleitos em 2006, o Ministro César Rocha sentencia: "Não tenho dificuldade em perceber que razões de ordem jurídica e, sobretudo, razões de ordem moral, inquinam a higidez dessa movimentação, a que a Justiça Eleitoral não pode dar abono, se instada a se manifestar a respeito da legitimidade de absorção do mandato eletivo por outra corrente partidária, que não recebeu sufrágios populares para o preenchimento daquela vaga".
Ensina, por outro lado, que não se confunde a perda do mandato com sanção dado que é ato lícito filiar-se ou desfiliar-se de partidos desde que não ocorra prejuízo para legenda que abrigou o candidato na disputa eleitoral.
E com os olhos voltados para a história, O Ministro-Relator escreve uma das mais significativas passagens do seu irretocável entendimento: "Creio que o tempo presente é o da afirmação da prevalência dos princípios constitucionais sobre as normas de organização dos Partidos Políticos, pois sem isto se instala, nas relações sociais e partidárias, uma alta dose de incerteza e dúvida, semeando alterações ocasionais e fortuitas nas composições das bancadas parlamentares, com grave dano à estabilidade dessas mesmas relações, abrindo-se ensejos a movimentações que mais servem para desabonar do que para engrandecer a vida pública".
Enfim, um avanço.
Com bem disse o Ministro Marco Aurélio de Mello, a decisão deu ênfase à vontade do eleitor e foi fiel à Constituição.
Um grande avanço, repita-se, na direção de superar o traço anti-partidista da (in)cultura política do nosso país e higienizar as relações dos filiados com o partidos de sua escolha.
E, espero, com mais dois saudáveis desdobramentos: recolocar na agenda nacional, prá valer, a reforma política e inibir o oportunismo e as negociatas, a exemplo do mensalão, tendo como mercadoria, o mandato, em flagrante usurpação da vontade popular.
PS: Gustavo Krause, PFL, é ex-ministro da Fazenda e escreve neste Blog quando Deus dá bom tempo.