Por Gustavo Krause O dia do aniversário é, segundo o poeta Horácio, um dia dedicado ao “deus da natureza humana”, o espírito mentor de cada pessoa.
No dia 5 de março Cícero Dias completaria cem anos.
Então, vamos oferecer bolo e acender velas para lembrar o que estamos celebrando: a imortalidade de Cícero.
Nessa dimensão da existência, Cícero e Pernambuco se fundiram definitivamente, porque inseparáveis sempre foram.
Ele dizia: “A gente vai, volta, faz pesquisas e mudanças, mas sempre redescobre a força das raízes e da infância. É inútil o artista querer fugir à evidência dessa realidade intemporal (…) Jundiá permanece como a capital da minha vida, em Paris ou onde quer que me encontre.” De fato, há três aspectos da vida e da obra de Cícero (busco amparo no seu maior conhecedor e exegeta, Mário Hélio, cujo versátil talento está para Cícero como – ensina Edson Nery – Lionel Venture está para Cézanne, Alfredo Baar para Picasso e Walter Zanini para Vicente do Rego Monteiro) que são consensuais: primeiro é sua relação com Pernambuco; segundo, o pintor-poeta inexplicável, conforme os cânones acadêmicos; terceiro, a presença do menino na grandeza de sua alma criadora.
De Pernambuco, jamais saiu.
Jamais foi um desterrado.
Cumpriu o destino dos grandes artistas: universalizou marcas extraídas de sua aldeia.
Chagall dizia que não seria artista se não fosse judeu.
Ouso dizer que Cícero não seria o artista que foi se não tivesse nascido em Pernambuco.
Aliás, três monstros sagrados da nossa cultura carregaram dentro de si a força da ancestralidade pernambucana e, me desculpem a imodéstia de mameluco, falaram para o mundo.
De Apipucos, transgressor, fértil, original, Gilberto Freyre desatou o nó da consciência colonizada e reinventou o Brasil.
Das margens do “cão sem plumas”, João Cabral compôs, mundo afora, a antipoética com uma poética insuperável capaz, escondendo a alma, de “cultivar o deserto como um pomar às avessas”.
Do alpendre de Jundiá, Cícero viu o mundo, “ele começa no Recife”, com os olhos flamejantes do pintor-poeta, lírico e lúdico, diverso de João que, vidrado em artes plásticas, era um cubista na poesia.
Nessa admirável viagem, eles se encontram na origem aristocrática: Gilberto mais urbano; João Cabral e Cícero, meninos de engenho; o primeiro vendo o mundo com os olhos penetrantes de cientista social, em prosa macia e adocicada; o segundo, com os olhos secos do nordestino; o terceiro, com os olhos molhados do nordestino.
Triunfalmente, os três se reencontram, imortalizados na originalíssima forma de ver, entender e cantar as raízes telúricas.
O pintor-poeta, afirmou Philippe Dagen, “é inexplicável”.
Ou seja, não enquadrável na profusão de “ismos” que convulsionaram a criação artística a partir de meados do século 19.
Com autoridade, Mário Hélio assinala que Cícero não era um dogmático; jamais pintou observando cânones ideológicos; não fez da arte matéria-prima de manifestos que fundam escolas.
Com efeito, o artista, escreve o poeta Ezra Pound, “é a antena da raça”.
Cícero, antenado, era permeável, porém, jamais determinado pelas matrizes teóricas que rondaram sua obra.
Mais uma vez, Mário Hélio é certeiro: em Cícero havia “afinidades eletivas” de uma época, mais do que o tema das influências.
Bem disse quem afirmou: “Cícero pintou quadros para alimentar seu desejo de pintar.
E unicamente para apaziguar seu temperamento.” Esta é uma feliz tradução para a “acuidade exacerbada” de Cícero, constatada por Mário de Andrade, e para o funcionamento da imaginação criadora à qual o próprio Cícero fez referências como “uma espécie de pré-história da arte, comum a todos, da qual todos beberiam, lago subterrâneo das origens, viveiro oculto de mitos, obsessões, fantasmas e visões.
Aos artistas cabe descobrir as ressurgências.” Para Dagen, Cícero “penetrou neste mundo obscuro e trouxe inesquecíveis imagens de sua curta viagem ao centro do sonho”.
Na pintura poética de Cícero se encaixa com perfeição a elaboração da mente prodigiosa de Da Vinci: “A pintura é uma poesia que se vê em vez de se sentir e a poesia é uma pintura que se sente em vez de se ver.” Finalmente, o artista consagrado, o belo e elegante Cícero, o “selvagem esplendidamente civilizado”, o neto do barão de Contendas, de talhe aristocrático, jamais deixou de ser menino. “Nunca fui senão uma criança que brincava”, esta frase de Fernando Pessoa bem que poderia ser de autoria de Cícero.
Menino travesso, sempre aprontando uma trela como desobedecer às amorosas prescrições de Raymonde quanto a mais uma dose de uísque; lançar um olhar enviesado em direção à beleza feminina que passa e dança, caminhando; ou pegar o pincel e brincar com a genialidade que Deus lhe deu sem perder o jeito de ser doce, amável, acessível e dotado de um senso de humor de que só os espíritos superiores são capazes.
PS: Gustavo Krause, consultor de empresas, foi ministro da Fazenda e do Meio Ambiente.