Do Blog do Noblat Por Mariluce Moura* O homicídio se tornou a primeira causa de morte das mulheres em idade reprodutiva em Recife, à frente dos derrames, infartos e do câncer de mama.

Em Boston, nos Estados Unidos, pela primeira vez em quase quatro séculos uma mulher – finalmente! – foi nomeada para dirigir a Harvard University, a mais antiga universidade norte-americana e uma das mais prestigiadas do mundo.

Essas duas notícias, ambas do mundo acadêmico e que aparentemente guardam entre si uma relação para lá de tênue – alguns espíritos práticos diriam mesmo nenhuma –, propunham no último domingo incômodas reflexões sobre a condição feminina nos dias que correm.

E de quebra sugeriam, por sua disparidade, desconfortáveis associações entre essa condição e um dos traços mais marcantes da vida social contemporânea como um todo.

Comecemos pela segunda notícia: a chegada da historiadora Drew Gilpin Faust, 59 anos, à presidência de Harvard – equivalente a reitor, no Brasil –, depois de 371 anos de absoluto domínio masculino no comando da instituição, tem um sabor especialmente irônico porque ela substitui Lawrence Summers.

Esse economista, 52 anos, ex-secretário do Tesouro no governo Clinton, provocou um fantástico terremoto no campus da universidade e na mídia americana em 2005, quando se tornou pública sua afirmação de que o pequeno número de mulheres nos altos postos da carreira acadêmica devia-se, entre outros fatores, às maiores habilidades inatas dos homens para a pesquisa científica, especialmente no campo das ciências exatas e abstratas.

Essa sugestão da inferioridade da inteligência feminina, que na verdade completava uma série indigesta de polêmicas protagonizadas por Summers, foi feita em janeiro daquele ano durante uma conferência no Escritório Nacional de Pesquisa Econômica.

A tempestade que se seguiu, com vozes a favor e contra a declaração, arrastou-se por meses, até o anúncio de sua decisão de renunciar e a efetiva saída do economista da presidência da Harvard, em junho de 2006, interinamente substituído por Derek Bok, o vice-presidente, até a condução de Drew Gilpin Faust ao cargo.

Poder-se-ia dizer, para usar palavras bem a seu gosto, que foi a inabilidade inata de Summers para o trato político que facilitou a ascensão de uma mulher ao comando da universidade.

E podem-se ouvir agora risos inevitáveis de um justificado sarcasmo feminino contra Summers.

Mais detalhes dessa história no site www.harvard.edu.

Passemos agora à primeira notícia que, embora originária da academia, refere-se a um vasto mundo sombrio que se espraia fora de seus muros.

Ela estava em extensa reportagem de Letícia Lins em O Globo.

O texto a certa altura informava que, em Recife, “mortes por armas de fogo, facadas ou espancamentos de adolescentes e adultas somam 11,11 casos por cada grupo de cem mil mulheres”, enquanto a média nacional, de acordo com as estimativas até aqui disponíveis, é de 5,6 casos por 100 mil mulheres.

A fonte principal da reportagem de Letícia era um estudo elaborado pelo médico Glaucius Cassiano Nascimento para sua dissertação de mestrado, defendida na Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

Baseado em dados da secretaria de Saúde de Recife e particularmente na análise de 5.165 atestados de óbitos de mulheres na faixa de 10 a 49 anos, no período de 1997 a 2004, ele demonstrou estatisticamente que os assassinatos, terceira causa de morte das mulheres na faixa etária examinada até o começo da década passada, ascendera nesta década a uma absurda primeira posição.

Os homicídios passaram a responder por 8,54% da mortalidade por causas específicas entre mulheres, contra 7,55% para as doenças cerebrovasculares, 6,43% para os infartos, 5,07% para os cânceres de mama e 5,07% para as doenças virais, a Aids aí incluída.

Vale a pena recuperar a reportagem para um exame minucioso de suas informações.

De qualquer sorte, uma das perguntas cruciais que os dados sugerem é: por que a violência contra as mulheres tem uma escala muito maior em Recife do que no resto do país?

Trata-se de uma sociedade muito mais violenta e machista?

E quais as razões e raízes desse fenômeno? É aí que as respostas de quem longamente tem se debruçado sobre esse tema propõem que talvez a questão não seja exatamente essa.

Em vez de uma Recife mais violenta – ainda que em termos impressionistas acreditemos todas que aquela é uma cidade exageradamente machista, mais que o Rio de Janeiro ou Salvador, por exemplo –, talvez devamos pensar numa Recife “que dispõe de estatísticas muito mais confiáveis e que tornam o fenômeno analisado mais visível em sua real dimensão”. É isso que levanta Jacira Melo, diretora do Instituto Patrícia Galvão, a Ong feminista que patrocinou, junto com a editora Publisher Brasil, o livro Assassinatos de Mulheres em Pernambuco, do jornalista Aureliano Biancarelli que, a propósito, será lançado hoje à noite na livraria Cultura do Conjunto Nacional em São Paulo.

Recife, diz Jacira, tem um Observatório da Violência extremamente ativo, assim como é extraordinariamente dinâmico o SOS Corpo - Instituto Feminista para a Democracia. “Acredito que se em outras regiões do país a violência contra as mulheres tivesse um acompanhamento da mesma qualidade, teríamos muitas surpresas nas estatísticas sobre assassinatos de mulheres no Brasil”, ela observa.

Essa vigilância, aliás, permite, em paralelo aos dados, trazer à luz histórias exemplares de resistência e vitória feminina contra a brutalidade sexista, exatamente nos moldes em que se confere no livro de Biancarelli.

Resta saber o que liga o caso da reitora da Harvard University – e as cada vez mais freqüentes vitórias das mulheres no ambiente acadêmico brasileiro, em meio à resistência machista à sua ascensão, tema do qual pretendo tratar brevemente – ao assassinato das mulheres em Pernambuco.

E também que associações tudo isso traz com a vida social contemporânea no geral.

Começando pelo fim, os especialistas em comunicação, ao examinarem justamente seu objeto, ou seja, as relações sociais tecidas pela comunicação de massa e pela mídia, percebem que uma forte marca das sociedades contemporâneas é a convivência de muitos tempos, digamos, assim, no aqui e agora.

O mais arcaico e o mais avançado convivem no mesmo espaço.

As práticas mais primitivas e as mais elaboradas em termos éticos dispõem-se num continuum social. É assim também que nesta sociedade, em meio ao trânsito da mulher de objeto a sujeito de sua vida, podemos na mesma estrada passar do brutal assassinato das mulheres à conquista, por uma delas, de um invejadíssimo posto do ambiente acadêmico mundial.

Mas o segundo e mais encoberto ponto da relação entre a notícia da reitora de Harvard e o do assassinato de mulheres em Recife é que ambas aludem à luta feminina contra a violência que as esmaga.

O gradiente quase infinito da violência contra a mulher vai, sim, da desqualificação da sua inteligência à sua eliminação brutal.

E a resistência pode e deve ir da afirmação concreta, política, de sua inteligência à proteção por todos os meios de seu corpo contra a violência masculina.

Afinal, como observa o sociólogo Luiz Eduardo Soares na orelha do livro de Biancarelli, devemos lembrar que “mais de 90% dos crimes letais, em todo o mundo, são cometidos por homens”.

E por sutil que isso seja, a auto-defesa das mulheres constitui um campo em que se joga também uma nova subjetivação, muito menos violenta, do masculino. *Mariluce Moura, jornalista, é diretora de redação Pesquisa Fapesp e autora do projeto dessa revista. É graduada pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), e mestra e doutora em comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).