TÚLIO VELHO BARRETO Recentemente, ouvi uma entrevista do violonista, compositor e cantor João Bosco acerca da onda de violência que cobre o Pa?s.
Mas o co-autor de clássicos da MPB, como, por exemplo, De frente pro crime, Kid cavaquinho e Incompatibilidade de gênios, que são verdadeiras crônicas sociais sobre o Rio de Janeiro, falava, sobretudo, dos enormes riscos que todos correm para desfrutar das belezas naturais e dos monumentos daquela que já foi chamada de Cidade Maravilhosa.
Pensando a respeito, logo me veio à mente a letra da canção Inútil paisagem do genial maestro, arranjador, compositor, instrumentista e cantor Antonio Carlos Jobim, que completaria 80 anos na semana passada, em parceria com o produtor musical Aloysio de Oliveira.
Tal relação, certamente, o entristeceria.
De fato, com a bossa nova, Tom Jobim não apenas revolucionou a música popular brasileira e influenciou o jazz, a música popular americana por excelência, como compôs algumas das canções mais belas sobre o Rio e suas paisagens, o que levou o poder público a acrescentar seu nome ao do Aeroporto do Galeão, quando ele morreu, em 1994.
Afinal, a letra de Samba do avião, de 1962 (“Minha alma canta/ Vejo o Rio de Janeiro/ Estou morrendo de saudade/ Rio, teu mar, praias sem fim/ Rio, você foi feito pra mim// Cristo Redentor/ Braços abertos sobre a Guanabara/ Este samba é só porque/ Rio, eu gosto de você/ …// Dentro de mais um minuto estaremos no Galeão/…/ Aperte o cinto, vamos chegar/ ??gua brilhando, olha a pista chegando/ E vamos nós/ Aterrar”), gravada pela primeira vez no álbum The wonderful world of Antonio Carlos Jobim (Warner, 1964), explica tudo.
Mas Jobim cantou as belezas do Rio em muitas outras canções, como na bela Corcovado, de 1960 (“Num cantinho um violão/ Este amor, uma canção/ Pra fazer feliz a quem se ama/ Muita calma pra pensar/ E ter tempo pra sonhar/ Da janela vê-se o Corcovado/ O Redentor, que lindo!”), lançada no álbum The composer of desafinado plays (Verve,1963).
E assim, como tantas outras de suas canções, Samba do avião e Corcovado ganharam versões em inglês e foram gravadas por outros gênios da música universal.
Por exemplo, Ella Fitzgerald gravou Song of the jet em Ella Fitzgerald sings the Antonio Carlos Jobim songbook (Pablo, 1981) e Miles Davis e Gil Evans gravaram Quiet nights of quiet stars em Quiet nights (Columbia, 1962).
A apenas aparente e paradoxal relação entre as belezas do Rio, a crescente escalada de violência na cidade e uma das canções mais bonitas de Jobim, Inútil paisagem, de 1963, pode ser constatada quando a ouvimos e acompanhamos o noticiário sobre a cidade nos últimos meses.
Originalmente lançada no álbum Caymmi visita Tom (Elenco,1964), o extraordinário LP produzido pelo autor da letra, Aloysio de Oliveira, uniu as fam?lias Caymmi e Jobim pela primeira vez e apresentou uma cantora novata de nome Nana cantando Inútil paisagem.
Depois, a canção ganhou o mundo com os t?tulos If you never come to me e Useless landscape, além do original.
E foi interpretada por aquele que era conhecido como The Voice (A Voz) no clássico álbum Francis Albert Sinatra & Antonio Carlos Jobim (Warner, 1967), com arranjo e regência de Claus Ogermann.
Pois bem, em Inútil paisagem, Jobim, que jamais a cantou, embora tenha acompanhado Sinatra, Elis Regina e Maúcha Adnet em gravações consagradas, e Oliveira perguntam: “Mas pra que/ Pra que tanto céu/ Pra que tanto mar,/ Pra que/ De que serve esta onda que quebra/ E o vento da tarde/ De que serve a tarde/ Inútil paisagem”.
E explica porque tão bela paisagem pode ser “inútil”: “Pode ser/ Que não venhas mais/ Que não venhas nunca mais/ De que servem as flores que nascem/ Pelo caminho/ Se o meu caminho/ Sozinho é nada/ É nada”.
No começo dos anos de 1960, quando as três canções aqui citadas foram compostas e escritas, a letra de Jobim e Oliveira tratava apenas da relação entre duas pessoas e a ausência de uma delas a partir de um rompimento amoroso, eventual ou definitivo.
Sim, de que valeria toda aquela bela paisagem se, para citar outra letra de Jobim, “é imposs?vel ser feliz sozinho”.
Hoje, diante da morte de uma mãe tentando proteger seu filho e de profissionais militares e civis em seus postos de trabalho, da atuação de mil?cias paramilitares ocupando e controlando os morros, antes territórios exclusivos de traficantes, de cenas bizarras de turistas posando com armas de policiais e da inequ?voca incapacidade dos gestores públicos no combate à violência, a bela paisagem carioca é realmente “inútil”.
Pois ninguém pode mais desfrutá-la sob o risco de “não (voltar) nunca mais” para casa.
O Rio e sua maior expressão musical não mereciam isso.
Nem o Brasil.
Túlio Velho Barreto é cientista pol?tico e pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco.