Por Túlio Velho Barreto *Cientista pol?tico e pesquisador da Fundação Joaquim Nabucotúlio@fundaj.gov.br Desde o último dia 7 de setembro, a página eletrônica do PSDB traz um documento intitulado "Carta aos Eleitores do PSDB" assinado pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.

Trata-se de um longo (são cinco páginas impressas em letras bem miúdas) e inusitado documento.

E, como indica seu t?tulo, é destinado aos simpatizantes do PSDB, pelo menos aparentemente.

Contudo, diante de seu conteúdo e amplitude, logo fica claro que se destina mesmo aos filiados e à militância tucana.

E que se trata de um documento pol?tico através do qual o ex-presidente procura se inserir definitivamente e de forma mais independente no debate eleitoral em curso e em seus previs?veis desdobramentos.

Da? o documento ter um caráter tão público (acessar https://www.psdb.org.br/noticias.asp?id=25740).

De fato, se os candidatos da base de apoio do Governo Lula fazem questão de colar os seus nomes no do presidente-candidato, o mesmo não se pode dizer dos que apóiam a chapa Geraldo Alckmin (PSDB) e José Jorge (PFL), que querem distância.

E, como sabemos, a razão é simples.

Enquanto o Governo Lula e o presidente-candidato gozam de altos ?ndices de popularidade e de altas taxas de intenção de voto, o ex-presidente FHC e os candidatos da aliança PSDB-PFL são rejeitados e não conseguem decolar nas pesquisas de intenção de votos, pelo menos até agora, passada mais da metade da campanha eleitoral obrigatória no rádio e na TV.

Exemplos?

Dou apenas dois, próximos e já clássicos: o tucano Lúcio Alcântara, candidato ao governo do Ceará, e o pefelista Mendonça Filho, também candidato à reeleição em Pernambuco.

O primeiro apóia o presidente-candidato Lula; e o segundo, esconde o seu palanque nacional formado por Alckmin e José Jorge.

Sem palanque, longe do principal debate pol?tico do momento e dos holofotes, FHC decidiu, então, recorrer a uma prática comum no universo pol?tico-partidário e acadêmico: escrever uma carta aberta, apenas aparentemente destinada a um público restrito – faço questão de repetir - para marcar sua posição.

E, de alguma forma, defender o seu próprio governo, o que se negam a fazer, por questões eleitorais, os principais correligionários e aliados do ex-presidente.

Assim sendo, o ex-presidente FHC tece loas bastante formais ao candidato da aliança PSDB-PFL à Presidência da República.

E critica o seu adversário, o presidente-candidato Lula.

O tema principal é a ética e a moral de cada um deles.

Nada mais natural, pois previs?vel.

Mas o que mais chama a atenção no documento são as cr?ticas igualmente desferidas ao próprio PSDB e aliados, além da autocr?tica expl?cita em algumas importantes passagens do texto.

Citarei apenas três passagens e farei breves comentários sobre elas, pois o restante do documento, como disse, é adorno que serve para enfeitar a candidatura de seu partido.

Inicialmente, o que parece preocupar o ex-presidente é o fato de pesar sobre o presidente-candidato Lula, mas também contra o PT e seu governo, uma série de denúncias.

E o fato de elas aparentemente não influenciar o voto do eleitorado.

No entanto, uma das explicações para que isto ocorra é dada pelo próprio FHC, quando ele se esforça para distinguir "mensalão" de "caixa dois".

Diz o ex-presidente: "Pagar mensalão é crime e como crime deve ser tratado.

Pagar mensalão para deputados, comprar seus votos, não é igual sequer a outra transgressão, a de não declarar dinheiro obtido para a campanha eleitoral, o "caixa dois".

A razão é simples: no caso do caixa dois, a fonte do dinheiro usado geralmente é privada, embora nem sempre o seja, e o objetivo é ajudar algum candidato individual em sua eleição.

O candidato e seus financiadores devem responder por essa ilicitude eleitoral.

No caso do mensalão a fonte foi pública; é roubo do dinheiro do povo, ainda que empréstimos fict?cios de bancos privados tenham sido usados para encobrir esse fato." (ver "Carta aos Eleitores do PSDB", de Fernando Henrique Cardoso, na página indica acima; grifos meus) A lógica empregada pelo ex-presidente em relação à questão é a mesma usada pelo presidente-candidato Lula, quando tentou caracterizar tudo o que ocorreu em seu governo como uso de "caixa dois", certamente por considerar, assim como faz FHC, que se trata de crime menor e recorrente.

O problema para o ex-presidente, como se vê, é o uso de dinheiro público.

Mas, é ele mesmo quem escreve: "no caso do caixa dois, a fonte do dinheiro usado geralmente é privada, embora nem sempre o seja…".

Assim, ainda que sem querer fazê-lo, FHC corrobora com a defesa que o presidente-candidato Lula fez de seu partido por "apenas" recorrer ao uso do "caixa dois".

Vê-se, aqui, o quanto é dif?cil fazer a cr?tica definitiva de tal prática entre os pol?ticos.

Aliás, há outra passagem esclarecedora: "É verdade que também somos responsáveis pelo que hoje se vê: a cada dia mais corrupção; a cada dia, menor reação.

Erramos no in?cio, quando quisemos tapar o sol com a peneira no caso do senador Azeredo.

Compreendo as razões: ele é pessoalmente decente; tudo se passou durante a campanha para sua reeleição como governador, que afinal ele perdeu.

Mesmo assim, calamos muito tempo…" (idem) Novamente, o ex-presidente FHC não só reconhece, ainda que implicitamente, que o PSDB fez uso do chamado "valeiroduto", em 1998, quando o então governador Eduardo Azeredo (PSDB-MG) tentou a reeleição.

Mas, "tucanamente", parece perdoá-lo, "afinal ele perdeu" e "é pessoalmente decente".

O mesmo o presidente-candidato Lula já disse acerca dos petistas e aliados envolvidos em "mensalão" e "caixa dois", que, para ele, é a mesma coisa.

Portanto,…

Mais um pouco adiante, o ex-presidente pisa no calo do ex-governador paulista Geraldo Alckmin, e quase não assopra: "Há problemas urgentes que afligem o povo e sobre os quais não podemos calar.

O mais angustiante é o medo: medo do crime, da violência.

Também neste caso o PSDB tem responsabilidades e tem o que dizer.

Em São Paulo, para cingir-me ao estado que foi governado por Alckmin, as taxas de homic?dio e latroc?nio ca?ram fortemente graças à ação da pol?cia.

Nunca se prendeu tanto, a um ponto tal que a cada mês há mais 800 presos, descontando-se os que são liberados.

Para atendê-los seria preciso construir uma penitenciária por mês!

Resultado: o sistema prisional está abarrotado e, há que reconhecer, não foi capaz de dar tratamento adequado à massa de presos, criando um caldo de cultura para a criminalidade e deixando ao PCC espaço para demagogia em nome da melhoria de condições de vida dos prisioneiros.

Sem falar no uso continuado de celulares, da cumplicidade entre criminosos e advogados, às vistas cúmplices, algumas vezes, das autoridades carcerárias." (ibidem; grifos meus) O texto, aqui, quase diz tudo, dispensando comentários.

O ex-presidente FHC é claro em responsabilizar o Governo Geraldo Alckmin por ter criado "um caldo de cultura para a criminalidade" e de ter deixado "ao PCC um espaço para a demagogia em nome da melhoria de condições de vida dos prisioneiros", isto é, permitindo ao PCC ocupar, ainda que demagogicamente, o espaço que deve ser inexoravelmente do Estado.

O que pensa o ex-presidente FHC, o único até hoje eleito e reeleito pelo PSDB, acerca do que um eventual Governo Alckmin-José Jorge será capaz de fazer na área de segurança pública e do sistema prisional brasileiro?

Finalmente, o ex-presidente FHC não esqueceu de fazer referências ao candidato a vice-presidente da República, o senador José Jorge, indicado pelo PFL para compor a chapa como representante do partido que é o principal aliado dos tucanos na oposição ao Governo Lula e na disputa eleitoral deste ano.

Ainda que de forma impl?cita, porque não cita o nome do senador pernambucano, a referência a José Jorge é igualmente inusitada e só é feita para defender os tão criticados, sobretudo pelos petistas, processos de privatização.

Senão, vejamos: "É preciso dizer com todas as letras e toda a força que a privatização da Telebrás foi um sucesso absoluto, que o preço pago pelo que o Estado possu?a dela (20% do capital total, embora de controle) talvez não corresponda hoje ao valor total das empresas de telecomunicações e que o povo se beneficiou enormemente, dispondo o pa?s de um moderno sistema de comunicações, sem o qual não haveria internet nem modernização produtiva.

E dizer também que no setor elétrico houve fracasso: privatizamos apenas a distribuição de energia e a Eletrosul, permanecendo nas mãos do governo Furnas, Chesf, Eletronorte e, naturalmente, Itaipu, que por seu caráter especial não deve mesmo ser privatizada.

Resultado: é só ver as estat?sticas sobre investimentos no setor (que não dispõe de um modelo claro e competente, indutor de parcerias com o setor privado) para entender porque vira-e-mexe fala-se de apagão.

Não o de 2001, conseqüência da má gerência e da falta das águas, mas da falta de investimentos para geração nova de energia.

E a privatização da Rede Ferroviária Nacional, acaso não foi um êxito?" (ibidem; grifos meus) Ora, está evidente que o ex-presidente FHC credita o "apagão", ocorrido em 2001, tanto a má gerência quanto à falta das águas das chuvas.

Só esqueceu de dizer que, no per?odo em tela, o ministro das Minas e Energia de seu governo era… o senador e candidato a vice-presidente da República da aliança PSDB-PFL, José Jorge.

Mais um tiro no pé.

Com a "Carta aos Eleitores do PSDB", o ex-presidente já não mira nas eleições de 2006 – que, possivelmente, já dá por perdida –, mas nos rumos que o PSDB deverá tomar nos próximos quatro anos – no segundo Governo Lula.

E, conseqüentemente, nas eleições presidenciais de 2010, em aberto, já que o presidente Lula não poderá disputar novo mandato.

Aliás, age da mesma forma como agiu com o correligionário e amigo José Serra, quando, às vésperas das eleições de 2002, conversou com o candidato favorito Lula e negociou o apoio dele (Lula) com o programa do FMI para o Brasil e as medidas macro-econômicas então em curso.

Com a "Carta…", novamente, FHC antecipa-se visando retomar – ele e seu cada vez mais diminuto grupo, formado sobretudo por paulista – as rédeas no PSDB, prestes a implodir, ou a fragmentar-se, a partir da consolidação de suas novas lideranças nacionais.

Por isso, atira para dentro e para fora, bate e assopra.

E, qualquer que seja o resultado das eleições de 2006, poderá dizer que acertou: apontando os erros ou ressaltando as virtudes de seus candidatos. *Cientista pol?tico e pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco, Túlio Velho Barreto, 48, é um dos autores dos livros "Democracia e Instituições Pol?ticas Brasileiras no final do Século XX" (MCP-UFPE/Bagaço, 1998) e "Nordeste 2004 - O Voto das Capitais" (Fundação Konrad Adenauer, 2005).

Co-organizou e participou dos livros "Na Trilha do Golpe - 1964 revisitado" (Editora Massangana, 2004) e "A Nova República - Visões da redemocratização" (Cepe/JC, 2006), que resultaram de séries especiais publicadas pelo Jornal do Commercio em parceria com a Fundação Joaquim Nabuco.