Por Luiz Otavio Cavalcanti*Ex-secretário do Planejamento e da Fazenda de Pernambucolotavio@fsm.com.br O presidente Lula diz que quer repetir o governo de Juscelino; o candidato Alckmin que seu modelo é Juscelino.

O que teve o ex-presidente JK (Juscelino Kubitschek, presidente da República de 1955 a 1960) de tão extraordinário a ponto de unir as aspirações dos dois maiores opostos da próxima eleição presidencial?

O mineiro tem sobriedade de sentimento e vontade.

Recebe os rompantes dos mandões como se fosse chuva de pedra, que não dura muito.

Passa.

E tudo volta ao normal.

Normal é o clima do mineiro, como é o clima da vida cotidiana.

O mineiro é homem do cotidiano.

Sua escala de valores acentua a segurança e não o risco; o sentido de permanência e não de passagem; a intensidade e não a superf?cie; o senso de tradição e não de progressismo.

Esse é o perfil do povo mineiro traçado por Alceu de Amoroso Lima (Voz de Minas, Rio, Ed.

Vozes, 2000).

Coloque-se sobre ele um sorriso largo irradiando simpatia e se terá a figura de JK.

Ele nasceu em Diamantina, estudou em seminário religioso, formou-se em medicina por opção e dedicou-se à pol?tica por vocação.

O casamento com dona Sarah o inseriu na grande parentela mineira.

Foi eleito deputado federal mais votado de Minas e, em 1940, convidado pelo governador Benedito Valadares para exercer o cargo de prefeito de Belo Horizonte.

Como prefeito de BH, JK abriu ruas, rasgou avenidas, adotou o registro fiscal de propriedades imobiliárias, viabilizando um importante programa de obras públicas.

Seu projeto mais arrojado foi promover a ocupação ordenada da lagoa da Pampulha.

Pediu o projeto a Oscar Niemeyer.

Seu dinamismo e seu esp?rito moderno começavam a torná-lo conhecido e admirado.

A gestão inovadora em BH foi trampolim para o governo de Minas em 1950.

Defendeu a prioridade para o binômio transportes/energia e sua candidatura era um desafio aos coronéis do seu Partido, o PSD, Partido Social Democrático.

Precisava do apoio do PTB do então candidato a presidente Getúlio Vargas para se eleger.

Mas o PSD tinha candidato a presidente, Cristiano Machado, e Juscelino não podia desprezá-lo publicamente para apoiar Getúlio.

Juscelino procurou Getúlio.

Este disse que o nome de JK era o que mais se afinava politicamente com sua linha.

Juscelino então colocou a questão de Cristiano Machado sugerindo uma terceira via.

Getúlio girou o charuto que sempre carregava na boca e deixou que o silêncio apaziguasse por instantes a ambição pol?tica dos dois.

Juscelino jogou seu ás: O povo mineiro é Getulista embora esteja dividido por muitos Partidos.

Se o senhor, como presidente do PTB, declarar aberta a questão da sucessão estadual, só colheremos benef?cios.

Teremos os votos dos que querem votar em Getúlio/Juscelino.

Vargas sorriu.

A proposta era brilhante.

Filigrana mineira ao gosto do gaúcho.

Os petebistas mineiros teriam a chance de escolher entre candidatos sem que a escolha implicasse quebra de disciplina partidária.

Getúlio concordou.

Ambos se elegeram.

Da? vem, em pol?tica, a expressão cristianizar.

Juscelino mudou a escala das obras públicas em Minas.

Cercou-se de planejadores e tecnocratas.

Convidou intelectuais para fazer seus discursos, Autran Dourado, Cyro dos Anjos e Augusto Frederico Schimdt.

A tônica de seus pronunciamentos sempre foi positiva, construtiva e esperançosa.

Como candidato a presidente, disse: Não há abismo capaz de conter o Brasil.

A UDN tentou de todas as formas derrubar a candidatura de JK.

Carlos Lacerda, l?der udenista, jornalista, grande tribuno, ex-deputado federal, ex-governador da Guanabara (do Rio capital, transformada na época em Estado) dizia: Se Juscelino for candidato, não pode ganhar.

Se ele ganhar, não pode tomar posse.

Se tomar posse, não pode governar.

JK ganhou com 33% dos votos válidos, à frente do udenista Juarez Távora, militar da Revolução de 30, com 28% dos votos e do ex-governador de São Paulo, Ademar de Barros, com 24%, que proclamava que roubava mas fazia.

Ao assumir a presidência, em 1955, JK enfrentou quatro desafios: 1. no governo, tinha que garantir unidade de ação a uma equipe que reunia integrantes do PSD, PTB e PR, diferentes nas origens sociais e nas ênfases pol?ticas; 2. no Congresso Nacional, tinha que obter estabilidade pol?tica, consolidando base de apoio parlamentar, para poder governar, superando provocações e dificuldades regimentais opostas pela UDN; 3. na população, tinha que vencer a batalha da opinião pública, quanto a sua proposta de governo inovadora e ousada, que compreendia a transferência da Capital federal para Bras?lia e a discussão dos efeitos inflacionários dessa decisão; 4. no âmbito militar, tinha que assegurar politicamente a liderança nos quartéis do general Henrique Dufles Teixeira Lott, seu ministro do Exército, cujo senso de legalidade havia garantido sua posse como presidente eleito, evitando um golpe que viria dez anos depois, em 1964.

Administrou com habilidade aliança pol?tica contraditória que abrangia, ao mesmo tempo, base rural conservadora e o trabalhismo urbano de timbre populista.

Para enfrentar esse quadro, JK construiu um espaço de centro pol?tico, articulado partidariamente e apoiado socialmente, de modo a viabilizar taxas razoáveis de governabilidade.

Ele empregou seu talento pol?tico para construir essa engenharia de governo.

Contou com três caracter?sticas pessoais: a) esp?rito de conciliação entre seus aliados tão distintos, PSD, PTB e PR; b) discurso de otimismo perante as expectativas da sociedade como instância para legitimar as mudanças que queria realizar; c) senso de autoridade entre seus auxiliares.

Otimismo era sua vocação natural que se transformou em recurso pol?tico identificador de sua ação administrativa.

Autoridade era seu zelo especial porque participara de per?odos de graves crises republicanas, convivido com o drama pessoal de Vargas e com a crise institucional de seu governo.

Conciliar, produzir esperança e disseminar a imagem de autoridade foi a trilogia de forte eficácia pol?tica que JK manejou.

Três elementos que refletem a cultura do homem brasileiro.

Juscelino diferia de Vargas em dois aspectos: o roteiro republicano, que ele se impôs para fortalecer as instituições pol?ticas; e o sentido de construção social, visando legitimar na população as mudanças que estava promovendo no Pa?s.

Sentido de vida diferente do roteiro trágico que atingiu Getúlio.

Tancredo Neves disse que Getúlio infundia medo e Juscelino, confiança.

Getúlio produzia frieza e Juscelino, calor.

JK realizou obra de s?ntese entre indiv?duo e personagem.

Como pessoa, era alegre e feliz.

Como homem público, se desempenhava com leveza e otimismo.

JK não assumiu o populismo como recurso pol?tico.

Sua simpatia envolvente era a instância pol?tica que desenvolveu como especialidade.

Foi profundamente brasileiro em alguns aspectos.

No exerc?cio do perdão, por exemplo.

Perdoou militares da Aeronáutica que promoveram duas tentativas de golpe em episódios que ficaram conhecidos com os nomes das brenhas em que os rebeldes procuraram se esconder: Aragarças e Jacareacanga. À medida que o tempo passa, JK projeta na perspectiva histórica uma imagem pública profundamente brasileira em três planos: . ação republicana na pol?tica, beneficiando as instituições do Pa?s na via da legalidade; . ação otimista na administração pol?tica, sem perder a ousadia e incentivando a auto-estima dos brasileiros; . ação pragmática na gestão pública, promovendo o segundo ciclo de industrialização do Pa?s, interiorizando o desenvolvimento com a construção de Bras?lia.

Ao deixar o governo, o refrão pol?tico mais ouvido no Brasil era JK 65, ecoando o desejo da população por sua volta ao governo.

Mas esse não era o plano dos militares.

JK, eleito senador por Goiás, foi cassado.

Os governos militares duraram de 1964 a 1985 quando Tancredo se elegeu indiretamente.

Com a morte de Tancredo, antes da posse, Sarney, vice, assumiu a presidência.

Próxima semana, FHC, o pensador que acordou presidente. *Luiz Otavio Cavalcanti, 60, advogado, executivo e ex-secretário do Planejamento (1975/79 e 1991/92) e da Fazenda (1983/86 e 1992/93) de Pernambuco.

Recifense, Cavalcanti dirige hoje a entidade mantenedora da Faculdade Santa Maria. É autor, entre outros livros, de Como a corrupção abalou o governo Lula (Ed.

Ediouro, 2005), Administradores, quem somos nós? (Ed.

Bagaço, 2005) e Ensaiando Pernambuco (Ed.

Bagaço, 2005).